Estamos em 30 de março, um sábado, e
amanhã será celebrado pelos cristãos o domingo de Páscoa. Há
algumas horas recebi um telefonema de um representante de um dos
jornais de grande circulação em João Pessoa, cidade onde moro,
solicitando que eu respondesse algumas perguntas e contribuísse com
uma reportagem que sairia nos jornais da cidade no dia seguinte. Pois
bem, em uma ocasião anterior já havia contribuído com esse mesmo
jornal e, apesar do descuido com o texto publicado, fui muito bem
tratado pela equipe de reportagem e não vi impedimentos para
contribuir mais uma vez. Ao confirmar minha disponibilidade, o
repórter, como na última vez em que fui entrevistado, me fez
algumas perguntas por telefone para – supostamente – adiantar o
texto das edições impressas do jornal e me informou que depois eu
receberia a visita da equipe para fazer algumas fotos. Mais uma vez,
repetindo nosso primeiro encontro, o foco era a minha vida religiosa,
mas até então não havia entendido o propósito da entrevista. Nos
contatos iniciais me questionaram sobre minha formação, idade,
orientação religiosa, as coisas que eu fazia dentro do meu culto
particular e as crenças de base da minha religião: vida pós-morte,
se eu acreditava em deus, como eram esses deuses e deusas, se havia
mais pessoas além de mim praticando tal religião... enfim.
Terminado o questionário de apresentação, o repórter finalmente
me explicou a razão da entrevista: estavam fazendo uma reportagem
sobre várias religiões veem a páscoa e o que a data significa. Não
bastasse esse impacto inicial, me vem a questão: “então, qual o
significado da Páscoa para o paganismo e para a bruxaria?”.
Ora, imagino que os leitores deste
texto possivelmente já saibam que eu sou helênico, mais
precisamente um politeísta helênico com um forte vínculo
reconstrucionista, e foi justamente essa uma das razões pelas quais
eu fui convidado para escrever neste jornal. Após respirar alguns
segundos e conferir se não havia nenhuma tabuleta de chumbo por
perto, muito pacientemente respondi que, antes de tudo, não poderia
falar em nome do paganismo, tampouco da bruxaria para responder a
questão. Não posso falar em nome do paganismo porque em síntese,
esse é um conceito guarda-chuva (e que na verdade mais expõe do que
protege) uma variada gama de práticas e cultos não cristãos, e que
por sua vez a bruxaria era algo demais específico e sobre o qual eu
não tinha vínculos ou interesses pessoais. Ao que me tange, exceto
em contextos políticos muito bem definidos, eu me defendo como
pagão. Aquém das discussões de cunho etimológico, pagão foi
desde o início o termo dado pela “Igreja” a qualquer pessoa que
não fosse cristão, não importando se fosse um helênico, um
cidadão de Roma, um bardo ou druida, um sacerdote de Ísis, escriba
kemético, ou qualquer outra crença ocidental ou oriental de base
não cristã. Em minha vida pessoal mantenho um princípio moral de
respeito por qualquer orientação religiosa, mas tenho de ser
honesto em dizer que não me interessa qualquer coisa que vem do
cristianismo, e forma como me classificar é uma dessas.
Voltando ao telefonema, após alguns
instantes, explicando minhas limitações para contribuir, fechei a
discussão com a seguinte colocação:
mesmo não podendo responder em nome destes grupos pelos quais você me interroga, preciso justificar que, tanto um quanto outro, são via de regra cultos que não tem qualquer relação com o senhor a quem chamam de Messias ou Jesus Cristo. Esse é um conto do folclore cristão que nada nos diz respeito, sendo assim, a celebração de sua morte, ressurreição ou qualquer outra coisa de sua vida pessoal, seja ela verídica ou não, muito pouco nos interessa. Sua pergunta não tem qualquer fundamento e uma resposta para ela não existe nesses termos, desculpe.
Mas, essa história, pra mim não
apareceu tão à toa, e comprova algo que já venho refletindo há
algum tempo. Ao que me parece, o avanço do fundamentalismo cristão,
especialmente o protestante, tem criado um panorama da diversidade
religiosa como variações do mesmo tema, ou seja, tudo é uma
variação do cristianismo, e, bem sabemos, não é bem assim que as
coisas acontecem. Isso em outros termos é que, nas ciências
sociais, é chamado de etnocentrismo, e diz respeito a essa forma tão
universalizadora de imaginar que não há possibilidade de ser
diferente.
Aliado a esse etnocentrismo cristão,
há ainda outros dois fatores que, eu acredito, também contribuem
para essa invisibilidade politeísta ou pagã no Brasil: o despreparo
e a preguiça.
Há em nosso país uma defasagem
nítida de pessoas suficientemente preparadas para liderar um grupo
de práticas religiosas não cristãs e, mais que isso, há muito
menos pessoas dispostas a aprender o que já está aí. O argumento
muitas vezes é simplista e simplificado e pode ser resumido em
frases do tipo: porque aprender se eu posso criar? Nesse movimento de
criar algo novo e não estudar as coisas já estabelecidas surgiu uma
parcela significativa das anedotas e monstros que povoam o imaginário
da comunidade nos dias de hoje.
Há ainda um segundo fator que é a
preguiça. Na nossa comunidade, se posso chamar assim, há um
elemento que se tornou muito cômodo e que se, segundo atestam, no
passado foi uma estratégia muito legítima de manter a continuidade
dos grupos, crenças, ensinamentos e das próprias tradições, hoje
em dia mais parecem um elemento facilitador do projeto quase genocida
que é o fundamentalismo religioso no Brasil: o anonimato. Ainda
assim, não falamos de qualquer anonimato, mas de um anonimato
conveniente, que serve sempre que é necessário expor-se. Conheço
poucas pessoas que apresentam publicamente, seja no trabalho, seja na
escola ou na universidade, seja na e para a família suas práticas
religiosas. Tornou-se mais conveniente esconder-se sob insígnias
como o agnosticismo, o “não tenho religião”, ou “acredito em
Deus”, do que afirmar suas práticas religiosas, e, não podemos
ser ingênuos, isso também contribui e favorece o etnocentrismo
cristão. Não se trata aqui de confeccionar camisas onde estejam
estampados: sou helenista, sou druidista, sou kemetista, ou pagão ou
sou bruxa. Acredito que em princípio, trata-se de uma ética do bem
cuidar de si. Como exigir respeito, dizer que o mundo é
preconceituoso e introjetar em si mesmo esses princípios negando
partes importantes de sua personalidade, de quem você é?
Pessoas se reúnem para celebrar o Solstício de Inverno em Stonehange
Há muitos caminhos ainda a serem
explorados, mas em síntese, gostaria de concluir com uma simples
colocação: não importa se vamos adotar ou não uma postura de
criadores de tradições ou de pagãos anônimos, mas precisamos
entender bem os custos dessas identidades que atribuímos ou deixamos
de atribuir a nós mesmos. O etnocentrismo é a visão sobre
nós onde nós não temos rosto ou voz; e esse etnocentrismo tem um poder de morte ou de vida que é não apenas simbólico, mas material também. Quem já tentou organizar
algum evento de caráter pagão já sentiu bem os significados desse
poder de morte e vida que o cristianismo tem: falta de recursos ou apoio do Estado, inacessibilidade a representantes, enfim, “não há
espaço para colocar essa gente estranha”. Isso aponta para uma
necessidade emergente de posicionar-se, e esse posicionamento maneira alguma implica
atribuir para si uma tarja limitadora. É preciso também mantermos nosso estranhamento próprio como marcas de nossas identidades além das telas dos computadores ou do quarto fechado. Como disse Fernando Pessoa:
“para ser grande, sê inteiro”. É isso que algum tempo falta a
nossa tão fragmentada comunidade: unidade. Só nos tornaremos
visíveis quando formos um sujeito se não grande, pelo menos
inteiro.
Grato pela atenção,
Thiago Oliveira.
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