sábado, 30 de março de 2013

Ta-Hiera: Qual o significado da Páscoa para o paganismo e para a Bruxaria?


Estamos em 30 de março, um sábado, e amanhã será celebrado pelos cristãos o domingo de Páscoa. Há algumas horas recebi um telefonema de um representante de um dos jornais de grande circulação em João Pessoa, cidade onde moro, solicitando que eu respondesse algumas perguntas e contribuísse com uma reportagem que sairia nos jornais da cidade no dia seguinte. Pois bem, em uma ocasião anterior já havia contribuído com esse mesmo jornal e, apesar do descuido com o texto publicado, fui muito bem tratado pela equipe de reportagem e não vi impedimentos para contribuir mais uma vez. Ao confirmar minha disponibilidade, o repórter, como na última vez em que fui entrevistado, me fez algumas perguntas por telefone para – supostamente – adiantar o texto das edições impressas do jornal e me informou que depois eu receberia a visita da equipe para fazer algumas fotos. Mais uma vez, repetindo nosso primeiro encontro, o foco era a minha vida religiosa, mas até então não havia entendido o propósito da entrevista. Nos contatos iniciais me questionaram sobre minha formação, idade, orientação religiosa, as coisas que eu fazia dentro do meu culto particular e as crenças de base da minha religião: vida pós-morte, se eu acreditava em deus, como eram esses deuses e deusas, se havia mais pessoas além de mim praticando tal religião... enfim. Terminado o questionário de apresentação, o repórter finalmente me explicou a razão da entrevista: estavam fazendo uma reportagem sobre várias religiões veem a páscoa e o que a data significa. Não bastasse esse impacto inicial, me vem a questão: “então, qual o significado da Páscoa para o paganismo e para a bruxaria?”.

Ora, imagino que os leitores deste texto possivelmente já saibam que eu sou helênico, mais precisamente um politeísta helênico com um forte vínculo reconstrucionista, e foi justamente essa uma das razões pelas quais eu fui convidado para escrever neste jornal. Após respirar alguns segundos e conferir se não havia nenhuma tabuleta de chumbo por perto, muito pacientemente respondi que, antes de tudo, não poderia falar em nome do paganismo, tampouco da bruxaria para responder a questão. Não posso falar em nome do paganismo porque em síntese, esse é um conceito guarda-chuva (e que na verdade mais expõe do que protege) uma variada gama de práticas e cultos não cristãos, e que por sua vez a bruxaria era algo demais específico e sobre o qual eu não tinha vínculos ou interesses pessoais. Ao que me tange, exceto em contextos políticos muito bem definidos, eu me defendo como pagão. Aquém das discussões de cunho etimológico, pagão foi desde o início o termo dado pela “Igreja” a qualquer pessoa que não fosse cristão, não importando se fosse um helênico, um cidadão de Roma, um bardo ou druida, um sacerdote de Ísis, escriba kemético, ou qualquer outra crença ocidental ou oriental de base não cristã. Em minha vida pessoal mantenho um princípio moral de respeito por qualquer orientação religiosa, mas tenho de ser honesto em dizer que não me interessa qualquer coisa que vem do cristianismo, e forma como me classificar é uma dessas.

Voltando ao telefonema, após alguns instantes, explicando minhas limitações para contribuir, fechei a discussão com a seguinte colocação: 
mesmo não podendo responder em nome destes grupos pelos quais você me interroga, preciso justificar que, tanto um quanto outro, são via de regra cultos que não tem qualquer relação com o senhor a quem chamam de Messias ou Jesus Cristo. Esse é um conto do folclore cristão que nada nos diz respeito, sendo assim, a celebração de sua morte, ressurreição ou qualquer outra coisa de sua vida pessoal, seja ela verídica ou não, muito pouco nos interessa. Sua pergunta não tem qualquer fundamento e uma resposta para ela não existe nesses termos, desculpe.
Mas, essa história, pra mim não apareceu tão à toa, e comprova algo que já venho refletindo há algum tempo. Ao que me parece, o avanço do fundamentalismo cristão, especialmente o protestante, tem criado um panorama da diversidade religiosa como variações do mesmo tema, ou seja, tudo é uma variação do cristianismo, e, bem sabemos, não é bem assim que as coisas acontecem. Isso em outros termos é que, nas ciências sociais, é chamado de etnocentrismo, e diz respeito a essa forma tão universalizadora de imaginar que não há possibilidade de ser diferente.

Aliado a esse etnocentrismo cristão, há ainda outros dois fatores que, eu acredito, também contribuem para essa invisibilidade politeísta ou pagã no Brasil: o despreparo e a preguiça.

Há em nosso país uma defasagem nítida de pessoas suficientemente preparadas para liderar um grupo de práticas religiosas não cristãs e, mais que isso, há muito menos pessoas dispostas a aprender o que já está aí. O argumento muitas vezes é simplista e simplificado e pode ser resumido em frases do tipo: porque aprender se eu posso criar? Nesse movimento de criar algo novo e não estudar as coisas já estabelecidas surgiu uma parcela significativa das anedotas e monstros que povoam o imaginário da comunidade nos dias de hoje.

Há ainda um segundo fator que é a preguiça. Na nossa comunidade, se posso chamar assim, há um elemento que se tornou muito cômodo e que se, segundo atestam, no passado foi uma estratégia muito legítima de manter a continuidade dos grupos, crenças, ensinamentos e das próprias tradições, hoje em dia mais parecem um elemento facilitador do projeto quase genocida que é o fundamentalismo religioso no Brasil: o anonimato. Ainda assim, não falamos de qualquer anonimato, mas de um anonimato conveniente, que serve sempre que é necessário expor-se. Conheço poucas pessoas que apresentam publicamente, seja no trabalho, seja na escola ou na universidade, seja na e para a família suas práticas religiosas. Tornou-se mais conveniente esconder-se sob insígnias como o agnosticismo, o “não tenho religião”, ou “acredito em Deus”, do que afirmar suas práticas religiosas, e, não podemos ser ingênuos, isso também contribui e favorece o etnocentrismo cristão. Não se trata aqui de confeccionar camisas onde estejam estampados: sou helenista, sou druidista, sou kemetista, ou pagão ou sou bruxa. Acredito que em princípio, trata-se de uma ética do bem cuidar de si. Como exigir respeito, dizer que o mundo é preconceituoso e introjetar em si mesmo esses princípios negando partes importantes de sua personalidade, de quem você é?

Pessoas se reúnem para celebrar o Solstício de Inverno em Stonehange

Há muitos caminhos ainda a serem explorados, mas em síntese, gostaria de concluir com uma simples colocação: não importa se vamos adotar ou não uma postura de criadores de tradições ou de pagãos anônimos, mas precisamos entender bem os custos dessas identidades que atribuímos ou deixamos de atribuir a nós mesmos. O etnocentrismo é a visão sobre nós onde nós não temos rosto ou voz; e esse etnocentrismo tem um poder de morte ou de vida que é não apenas simbólico, mas material também.  Quem já tentou organizar algum evento de caráter pagão já sentiu bem os significados desse poder de morte e vida que o cristianismo tem: falta de recursos ou apoio do Estado, inacessibilidade a representantes, enfim, “não há espaço para colocar essa gente estranha”. Isso aponta para uma necessidade emergente de posicionar-se, e esse posicionamento maneira alguma implica atribuir para si uma tarja limitadora. É preciso também mantermos nosso estranhamento próprio como marcas de nossas identidades além das telas dos computadores ou do quarto fechado. Como disse Fernando Pessoa: “para ser grande, sê inteiro”. É isso que algum tempo falta a nossa tão fragmentada comunidade: unidade. Só nos tornaremos visíveis quando formos um sujeito se não grande, pelo menos inteiro.

Grato pela atenção,

Thiago Oliveira.

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