terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Ta-Hiera: Reconstrucionismos: o que são e pra que servem?

Fui muito cordialmente convidado para participar do presente Jornal e escrever sobre o movimento reconstrucionista, especialmente o reconstrucionismo helênico, grupo do qual faço parte há alguns anos. Assim, antes de iniciarmos as discussões gostaria de introduzir os leitores, sejam peritos ou curiosos, sobre o lugar que o movimento atualmente ocupa no cenário maior das manifestações pagãs.

O reconstrucionismo está localizado historicamente como uma das vertentes que surgiram a partir da Wicca e seu desenvolvimento a partir da década de 1960. Junto com a retomada das religiões e espiritualidades nativas influenciadas pelo xamanismo, o ressurgimento público das práticas de bruxaria e feitiçaria (e não nos deteremos às diferenças entre uma e outra) e inclusive o intenso processo de fragmentação da própria Wicca em uma infinidade de tradições e grupos, o reconstrucionismo surge, a princípio, nos contextos anglófonos (Estados Unidos e Inglaterra) como um movimento de “insatisfação com o nível intelectual” dos praticantes da Wicca. Agora façamos uma pausa para entender o que isso significa. A partir da década de 1990, quando começa-se a esboçar isso que é o reconstrucionismo, muitos grupos wiccans perambulavam pelo cenário ocidental. O ecletismo, ou seja, a mistura de visões de mundo, panteões e formas de lidar e interpretar as espiritualidades nativas e pré-cristãs eram a marca geral desse movimento. Assim, a insatisfação intelectual “denunciada” por esse novo movimento estava na verdade em um desacordo com essa forma de lidar com a religião, que se preocupava mais com a prática e desconsiderava a necessidade do estudo histórico destas religiões, como muitas vezes evidenciado pelos autores clássicos da Wicca – a exemplo da Doreen Valiente, para citar um dos nomes. 

Então, nesse clima de insatisfação inicia-se um amplo movimento com raízes pagãs, mas que rejeita a Wicca como expressão desse paganismo antigo-moderno; esses pagãos então se reconhecem enquanto praticantes de religiões históricas. Por volta do fim da década de 1970, o historiador Isaac Bonewits utiliza o termo para referir-se àquelas pessoas que de alguma forma praticavam uma religião de cunho histórico propriamente: os cultos romanos, a latreia helênica, ou o paganismo celta, entre os principais. 

Saindo da década de 1970 e voltando aos dias atuais, o reconstrucionismo pode ser entendido substancialmente – e isso quer dizer que vamos pular as discussões atuais sobre a questão – como uma forma de lidar com a religião que consiste, primeiro, na recusa ao ecletismo, e segundo, numa preocupação com a acuidade dos ritos e crenças, ou seja, busca-se uma fundamentação nas práticas, fundamentação essa que consiste num vínculo entre pesquisa e ação, entre saber o que os antigos faziam para traduzir esse conhecimento nos dias atuais, quando necessário, operando mudanças e adaptações. Essas adaptações estão não apenas no plano do culto, mas também no das ações, já que quase todos os ramos do reconstrucionismo têm um forte apelo à retomada de um modelo moral ou de comportamento ético conforme as bases das culturas em que estão inseridas. 

Um ponto muito importante ao entender o reconstrucionismo é buscar diferenciá-lo daquilo que se pode chamar de “revivalismo”. O revivalismo, em termos gerais, é uma tendência a querer transpor o passado para os dias atuais, reproduzir o que foi no que está sendo. Isso não é reconstrucionismo. O reconstrucionismo, de forma mais ampla, está nas coisas como um todo, na tentativa de adaptação ou tradução de alguns conhecimentos e na forma com que lidamos com o mundo, para os dias atuais; não é reviver o passado, é nos inspirarmos no que há de bom e proveitoso nele para melhorarmos os dias de hoje. 

Mas talvez, o mais importante de tudo isso seja entender que, assim como não existem leis universais que se apliquem a todos os seres, o reconstrucionismo não é mais ou menos do que a Wicca tradicional ou as suas vertentes modernas; não é melhor do que a bruxaria ou as religiões nativas. O reconstrucionismo é uma opção que serve à forma como alguns buscam viver suas experiências religiosas e espirituais; assim, cabe a alguns e a outros não. Nesse universo de diferenças e assimetrias, mais vale tentar conhecer o outro e desenvolver laços de hospitalidade e respeito do que repetir guerras que não são nossas em busca de uma verdade que certamente, como disse no início desse parágrafo, não devem existir – e se existem, bem... talvez seja o caso de não nos interessar. 

A todos minhas boas vindas e espero que possamos ter uma convivência agradável e proveitosa!

Eirene Theoi; (A paz dos deuses, em grego)

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