Escrevo essa crônica mais na tentativa de desenvolver um diálogo com os leitores que, assim como eu, também se interessam pela questão, do que propriamente para desenvolver uma teoria fundamentada e formada. Fato é que a ideia de "linhagem" ou "ascendência" faz parte de muitas tradições religiosas contemporaneamente, em especial aquelas que têm elementos de mistérios (entenda-se religião de mistério, e não mistério enquanto segredo profano) ou são totalmente fundadas nesse princípio. Meu objetivo aqui é apresentar alguns breves argumentos contrapondo o que eu acredito serem vantagens e adversidades dessa forma de organização em relação a outras experiências religiosas, onde isso não é exigido ou necessário, em especial o reconstrucionismo helênico, movimento ao qual eu me filio e pelo qual posso falar com alguma propriedade.
Para iniciar, permitam-me que eu esboce o que entendo por ascendência e linhagem. A ideia de continuidade é a base de muitas tradições pagãs atualmente - seja uma continuidade enquanto retomada de uma antiga prática, seja a reinvenção de uma com base numa outra que lhe seja mais antiga; prova disso são as inúmeras teorias e argumentos de que a bruxaria, por exemplo, nunca teria sido extinta mesmo com fenômenos históricos como a Inquisição que trouxe a morte de milhões de pessoas pela Europa e países novos entre os séculos XII e XVII, em especial. Esse argumento não se resume à bruxaria e aparece também nas falas de alguns teóricos que fundamentam as pesquisas e práticas de grupos reconstrucionistas, os quais não cabe aqui mencionar já que não teria muita utilidade além da ilustração simplória. Pois bem, em todas essas argumentações permanece a ideia, ou o vestígio de ideia de que de alguma forma nos filiamos a uma corrente, estamos inseridos em alguma linhagem ou retomamos aspectos antigos que estavam encerrados em nossa ascendência familiar (seja ela sanguínea ou espiritual). Desta forma, entendo linhagem como a filiação ou justaposição de grupos ou pessoas a uma determinada perspectiva de pensamento ou prática (não que estes sejam coisas diferentes, mas é preciso reconhecer que nem sempre um afirma o outro) e a ascendência como a incorporação de elementos culturais, reflexivos e práticos que se vincula a ancestrais familiares não necessariamente factuais.
Permitam-me agora o passo mais ousado desta empreitada. Ao longo dos anos percebo algumas pessoas afirmarem o (neo)paganismo como um movimento de resgate de antigas tradições, religiões, práticas culturais, enfim. Pois bem, devo confessar agora que estou em desacordo com essa forma de entender o neopaganismo e, no que me cabe, vejo-o como algo especialmente novo e criativo. Não há nada a ser resgatado no passado, nada. O que fizeram os povos celtas, gregos, romanos, enfim foi bom para eles. O que fazemos consistem em variadas operações de tradução, um exercício que tem como propósito falar ao espírito por meio de códigos que estiveram por muito tempo esquecidos, mas que em verdade, são eles que ativam nossa percepção e forma de relacionar-se com o mundo. Deixe que eu tomo alguns exemplos. Durante boa parte da antiguidade, homens e mulheres gregos referiam-se ao tempo da colheita como "Chronos", este por sua vez era não apenas esse movimento da terra de matar e fazer viver, como o próprio deus que organiza essa percepção da natureza. Com o advento do cristianismo, novas formas de relacionar-se instituem novas palavras, um novo léxico das relações. Viver com os deuses é substituído por "viver para" o deus. Retomemos agora ao foco.
Ao inserirmos em nossa vida uma forma, uma expressão de religiosidade historicamente anterior ao contexto em que vivemos, estamos realizando diversas operações de tradução; uma tentativa de encaixar aquilo que sabemos ou podemos entender do passado para nossas práticas diárias e comunitárias. Isso certamente não é tão fácil, principalmente quando tomamos como gerais alguns princípios que são apenas locais (a exemplo da ideia de individualismo moderno versus o tribalismo da antiguidade: dizer que toda forma de relação social é individualista é no mínimo etnocêntrico).
Nesse aspecto, entendo que as noções de linhagem e ascendência atuam como princípios reguladores, um fator de reconhecimento e pertencimento. Sujeitos que partilham de uma mesma linhagem adotam perspectivas similares para uma leitura do fato. É o caso por exemplo - e tomem isso como um exemplo grosseiro, tendo em vista a pouca propriedade que tenho na área - o caso das linhagens no meio da wicca tradicional e da ascendência na bruxaria familiar. Nesses meios, recolher a linhagem de um membro, quando exigido, e isso acontece apenas em circunstâncias bem marcadas e não para todos, é uma forma de legitimar as práticas do sujeito em relação ao conjunto do grupo e, de alguma forma, contribui para a coesão deste mesmo grupo.
No entanto, pode ser particularmente problemático como tomamos essas noções como um indício de "autenticidade", ou seja, como se tal grupo fosse o criador e único autorizado a falar sobre determinado tema ou de tal forma. Em um período histórico marcado por uma imensa capacidade de circulação internacional de informação por meio de tradutores, internet e do mercado editoral, pensar dessa forma pode parecer ser absolutamente ingênuo. Se fossemos recorrer a linhagem de um mesmo grupo até suas origens poderíamos chegar aquele abismo que é a pergunta: Se Deus criou tudo, então quem criou Deus? Somos animais curiosos, ou como diria Aristóteles, animais políticos e, a partir disso, é preciso reconhecer que todos os nossos argumentos e respostas são mediados por interesses que dialogam com nossa inserção em um grupo, nossos interesses e também nossas formações. Nada é atoa.
Já no caso dos grupos reconstrucionistas, em sua maioria, a noção de linhagem não existe e a ascendência é muito pouco comum, ou realmente criticada, apresentando-se apenas em algumas comunidades com apelo nitidamente nacionalista (ver o caso dos lusitanos, dos irlandeses e dos gregos, por exemplo). Se por um lado não há a exigência ou reconhecimento de tais elementos como prioritários, por outro os problemas não são menores (quiçá sejam maiores), de modo que a ideias de autoridade ou de legitimidade aparecem com mais facilidades, inclusive de nós mesmos: quem nunca achou estranho um grego por exemplo não saber quem é Atena, ou um irlandês não conhecer Brigit? Pois é, também tomamos nossa parte no desenrolar do problema.
Nos grupos reconstrucionistas de forma geral, a base da prática religiosa é a religião pública (exclua-se aqui o caso do Kemetismo, sobre o qual eu não tenho muitas informações), e por essa razão, qualquer curioso ou pesquisador pode ter acesso aos rituais ou cerimônias públicas; por certo também há aqueles grupos com práticas privativas, e isso é tão legítimo quanto tendo em vista que a religião não existe apenas em sua modalidade civil, mas também está relacionada com práticas familiares e pessoais, algumas com inacreditável crescimento, outras de maior timidez e que ficaram guardadas nos porões da história. No caso do Reconstrucionismo Helênico no Brasil, que toma por base critérios já adotados por outros grupos mais antigos, não se exige de ninguém um atestado de ligação sanguínea, parental ou qualquer que seja. A base é e deverá ser sempre o respeito à pessoa, independente de sexo/gênero, etnicidade, raça, etnia, enfim.
Controvérsias a parte, pensar a constituição dos grupos a partir de suas formas de constituição é parte fundamental para entendermos que a diversidade de opiniões e formas de atuação de cada grupo. Não cabe pensar em grupos de pedigree ou vira-latas, porque não há em nós qualquer atestado de que estamos fazendo a coisa certa, que não a nossa convicção de estarmos fazendo o melhor para sermos tão bom quanto desejamos ser. E, espero que esteja certo, é isso que importa.
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