O xamanismo é uma maneira de interpretar o mundo, ou melhor, os mundos, compartilhada por povos de quase todo o planeta. Mas, se há algum lugar onde se tornou possível estudar e documentar esse fenômeno, foi no vasto território russo-asiático. O fruto deste trabalho está agora exposto no Museu Valenciano do Iluminismo e da Modernidade (MUVIM), na Espanha, que hospeda até o dia 29 de setembro a mostra "Os Outros Mundos - Xamanismo nos Povos da Sibéria”.
No início do século XX, foram catalogados 33 grupos étnicos nativos da região da Sibéria e do Extremo Oriente da Rússia. Apesar das diferenças significativas entre eles, todos praticavam rituais xamânicos. Com a urbanização progressiva de suas terras, a industrialização, a colonização e, principalmente, a perseguição religiosa nos tempos soviéticos, esta forma de vida e de espiritualidade foi diminuindo, chegando hoje às raias da extinção.
Se parte deste conhecimento ancestral chegou até nós, foi em muito devido ao trabalho dos pesquisadores do Museu Russo de Etnografia, que se encarregaram de documentar e recolher objetos diversos relacionados ao xamanismo, não sem alguma resistência de seus proprietários, que achavam que estas peças simbólicas eram a garantia de sua sobrevivência cultural, bem como de sua conexão com os antepassados.
Mas vamos por partes. O que queremos dizer com xamã? Nas palavras de Joan Gregori, curador da exposição do MUVIM, "o xamã na Sibéria é o portador de conhecimentos sagrados, crenças e tradições, sendo dotado de qualidades tais como cura, magia ou adivinhação. Mas, acima de tudo, cumpre o papel essencial de companheiro e guia das almas dos mortos para o mundo dos espíritos, a fim de ajudá-las a encontrar seu lugar entre os ancestrais".
Ou seja, o xamã, que pode ser homem ou mulher, seria uma espécie de intermediário entre os vivos e os espíritos ao seu redor. Alguém dotado de um dom especial, que permite a ele ou a ela viajar entre os três mundos que formavam a cosmovisão desses povos: o submundo, o mundo superior e o mundo que nos rodeia e que é o único que podemos ver.
Qual é a diferença entre o xamanismo e a feitiçaria? De acordo com Gregori, a bruxaria é mais comum na África e tem certo viés maligno, enquanto que o xamanismo é mais típico da Europa, da Ásia e da América. Supõe-se que o feiticeiro tenha um pacto com o diabo. O xamã, por outro lado, se conecta com os espíritos, que podem ser bons ou maus. E se forem maus, o xamã lutará contra eles para proteger a comunidade. A cerimônia pela qual o xamã se conectava com essas almas é conhecida como kamlanie. Este ritual, muito vivo para os povos siberianos entre o final do século XIX e início do século XX, estava intimamente ligado ao respeito em relação aos elementos da natureza.
Este "fundamento ético" fazia, por exemplo, com que essas culturas caçassem e pescassem só o que elas precisavam para viver e muitas vezes fizessem oferendas para agradecer a natureza por seus presentes. Segundo Gregori, essa concepção "naturalista" levou a uma espécie de "neo-xamanismo" intimamente ligado ao movimento hippie. Outra ligação entre os xamãs antigos e modernos seria o êxtase, que é o que permite a conexão com os espíritos durante o ritual. Este transe é conseguido pela ingestão de álcool ou drogas psicotrópicas, música, percussão ou jejum, todos métodos documentados entre os povos da Sibéria.
O toque do tambor é o modo mais comum para se obter o êxtase e, por isso, é um dos elementos mais importantes da tradição. Outros símbolos são o chum, local onde é realizado o ritual xamânico, a árvore da vida, coluna de madeira que representa os três mundos e os “aliados”, entidades espirituais que ajudam o xamã em sua missão.
Mas o símbolo fundamental é o traje. "As vestes são como um uniforme. Sem ele, o xamã não é um xamã", diz Gregori. A roupa é concebida como uma armadura, com capacete, colete e elementos metálicos, como sinos, tudo para auxiliar o xamã na luta simbólica contra os maus espíritos de outros mundos. Além disso, o traje representa o universo e fala de seu dono, das viagens astrais que ele fez ou da força de seus aliados. Por exemplo, na exposição de Valência, há um que pesa 43 quilos e que dá a entender, por sua complexidade, que pertenceu algum dia a um xamã extremamente respeitado.
A mostra, de acesso livre e gratuito, é, enfim, uma oportunidade única para quem quer conhecer um pouco mais sobre os rituais xamânicos e a bela tradição daqueles povos, pois é a primeira vez que esses objetos saem do Museu Russo de Etnografia, em São Petersburgo. E para quem não está na Espanha, vale pelo menos uma visita ao site do museu: www.muvim.es .
Fonte: Diário da Rússia
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