sexta-feira, 10 de junho de 2011

A cosmologia e a religião do Império Inca (Tahuantinsuyo) - Parte 2

Para os jatúnrunas, o camaquem estava nas colheitas, no gado, nas casas, nos fenômenos atmosféricos, nos objetos, nas terras, nas águas, em si mesmos e nas pessoas que os rodeavam; por isto teriam de haver tantos deuses em sua cultura, por isto teriam de haver tantos ritos religiosos.

Seguindo de perto as formas de organização social adotadas - embora as divindades fossem pensadas como a origem destas formas sociais - os muitos deuses se organizavam em papéis específicos e dentro de uma hierarquia também específica. Adorados em huacas (locais sagrados) e templos através de ídolos de argila, madeira, pedra e metal, estes deuses viviam como os humanos: amavam, odiavam, temiam, matavam, casavam, tinham filhos e morriam, eles também.

Recordando Aristóteles, "todas as pessoas afirmam que os deuses também tinham um rei, pois elas mesmas sempre tiveram um, no passado ou no presente; pois os homens criam deuses à sua imagem, não apenas no que concerne à forma, mas também no que diz respeito ao seu modo de vida". Ou, em outras palavras, como quer o antropólogo norte-americano Clifford Geertz, "os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo - o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e suas disposições morais e estéticas - e sua visão de mundo. Enfim, o quadro que faz do que são as coisas na sua simples atualidade e suas idéias mais abrangentes sobre ordem".

Desta maneira, e como exemplo, o hábito ancestral de desposar a própria irmã, adotado pelos Inca e outras etnias como forma de manter o poder nas mãos de uma só linhagem, justificava-se cosmogonicamente pela união entre Sol e Lua - filhos irmãos dos deuses Pachacámac e Pachamama para algumas etnias, mas filhos irmãos do deus Ticsi Huiracocha Pachachayachic para a etnia puquina, ancestral da Inca.
E se os Inca não conseguiram impor integralmente sua representação cosmogônica (e a superestrutura ideológica dela decorrente) sobre todas as etnias subjugadas, as quais continuavam a adorar principalmente seus próprios deuses, foi por que o Tahuantinsuyo durou 95 anos em sua área nuclear e apenas 25 nas áreas periféricas, tempo insuficiente para tornar hegemônica sua ideologia.

De todo modo, contudo, a estrutura religiosa adotada no Tahuantinsuyo e conformada pela elite cusquenha dava primazia aos seus próprios deuses como maiores, vindo a seguir os das etnias anexadas; ao mesmo tempo, os deuses maiores eram invariavelmente antropomorfos, ao passo que muitos dos menores eram zoomorfos ou se atribuía a ídolos zoomórficos o papel de companheiros dos deuses, encarregados de prestar serviço a eles; além disso, o Sapainca era tido como o único ser vivo que podia por em contato os três mundos (ananpacha, caypacha e ucupacha) e fazê-los atuar de forma organizada, num papel anteriormente desempenhado por cápacs e jatúncuracas das diversas etnias pré-Tahuantinsuyo.

Por fim, existiam também homens divinizados, em geral os fundadores de ayllus, sayas e reinos, cujas múmias eram guardadas e adoradas; para este fim se organizavam verdadeiras legiões de servidores e assistentes, encarregados de satisfazer os gostos dos mortos com roupas, bebida, alimentos, adornos e sacrifícios de animais nas huacas onde tais mallquis ("múmias") eram guardados.

Além dos principais ídolos, venerados nos templos, e das múmias dos antepassados do ayllu, os jatúnrunas veneravam também as qonopas (ou huasi qamayuq, de huasi, "casa" e qamayuq, "protetor"), ídolos da família, algo assim como os deuses lares romanos (ou, em uma versão atual, os santos e santas aos quais uma família se devota e têm sua representação em pequenas estatuetas em altares domésticos).

Foram pequenos ídolos que não podiam faltar em casa alguma, sendo que os mais abundantes correspondiam a pequenas esculturas de pedra negra e representavam animais das diferentes regiões; como registrou frei Pablo José de Arriaga, "o comum é que as qonopas sejam herdadas pelos filhos e é coisa certa e averiguada em todos os povos desta visita que, entre os irmãos, o mais velho mantém sempre a qonopa de seus pais e tem de dar conta dela (...) e o primogênito guarda os objetos e roupas das huacas para as festas (...) A todas as qonopas, de qualquer forma, se presta a mesma adoração que às huacas, embora a adoração destas últimas seja pública e comum em toda a província, de todo o povoado ou todo o ayllu, conforme a huaca, e a adoração das qonopas é particular e reservada dos moradores de cada casa" (parênteses meus).

A multiplicidade de deuses apontava a multiplicidade de etnias: assim como as etnias tiveram cápacs rivais que disputavam a hegemonia, também existiram deuses antagônicos; e se houve cápacs que detiveram o poder absoluto, também existiram deuses hegemônicos.
Mas, com o tempo e a aglutinação de inúmeras etnias em um só Estado Imperial, gradativamente um principal deus foi se impondo.

A este respeito, o antropólogo norte-americano E.E. Evans-Pritchard, citando o orientalista Max Müler (1823-1900), lembra que o "henoteísmo", forma de religião na qual se cultua um Deus principal, sem que se exclua a existência de outros, "ocorre em períodos que antecedem a formação da nações em tribos independentes, sendo esta uma forma comunal e (ainda) não imperial de religião (...). À medida que se desenvolvem os sistemas políticos, suas distintas partes componentes são representadas por deuses tutelares; e quando as partes se unem, no momento em que as tribos se agregam em nações, aparece a idéia de um ser supremo. Este é o deus tutelar do grupo dominante na fusão" (parênteses meus).

Entre os Inca, este deus tutelar foi Huiracocha, de cuja estátua venerada no santuário de Cacha restou somente a cabeça; esta peça, com 39 centímetros de altura e esculpida em granito, foi encontrada no subsolo da Igreja da Companhia de Jesus, em Cusco, onde fora enterrada pelo jesuítas no princípio do Século XVI, e atualmente está no Museu de América, em Madri, Espanha.

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