domingo, 22 de maio de 2011

Àmon-Rá, um Deus Transcendente

Deus principal de Tebas (Waset), cidade do Alto Egito sede do governo durante o Novo Império (cerca de 1550-1070 a.C.), Àmon tornou-se um dos mais poderosos deuses da Antiguidade.
Sua proeminência na região já é notada no Médio Império (cerca de 2040-1640 a.C.), quando, por razões que ignoramos, os príncipes da XI Dinastia, o adotaram como deus da sua residência.
Instalado em Tebas, ao lado do antigo deus local Montu, foi logo assimilado a Min, deus da fecundidade.
Foi, entretanto, nos cinco séculos do Novo Império que Àmon se tornou o líder do panteão egípcio.
Àmon não tinha mitologia própria. Criaram-lhe, então, uma família: Mut (uma deusa mãe) tornou-se sua esposa e Kensu (o deus da lua) seu filho.

Àmon foi associado ao deus criador solar Rá (de Heliópolis) daí o nome Àmon-Rá; e posteriormente o assimilaram à outro deus criador, Ptah (Mênfis).  Tantas associações devem ter causado muita confusão, mas Àmon-Rá tornou-se uma síntese de todos os deuses criadores, sendo chamado de "Àmon-Rá, Rei dos Deuses".

Ele era o chefe indiscutido do panteão e deus do Império.  Seu nome quer dizer "O Oculto", e seu mistério está contido em seu nome, pois sua essência é imperceptível, e ele não pode ser chamado por qualquer termo que dê idéia de sua natureza íntima, e subjacente de "ocultação".  Sua identidade é tão secreta que nenhum outro deus conhece seu nome verdadeiro.  Tebas, sua cidade sagrada era o Olho de Rá, e vigiava todas as outras cidades.  Àmon-Rá criara-se a si próprio, era invisível, nascido secretamente.  Todos deuses tomaram forma depois de ele ter realizado o primeiro ato de criação.




















Originalmente, Àmon fazia parte de uma das forças elementares da criação.
No mito da criação que vem da cidade de Mermópolis, Àmon e mais três deuses aparecem com suas esposas (contrapartes femininas) sobre o montículo que emerge das águas primordiais.  Parte deste mito foi assimilado pelos sacerdotes de Àmon-Rá, que associaram Tebas com montículo que emergiu do oceano primeiro. Àmon-Rá era o criador de homens, deuses e tudo o que existe sobre a terra.
 
Era ele quem fazia o Nilo transbordar na época das cheias.  Um pouco da água da inundação era recolhida em um vaso cuja tampa era esculpida na forma de uma cabeça de carneiro (o animal sagrado de Àmon-Rá) e oferecida ao deus pelo faraó.
Sem dúvida, o Nilo tornava o Egito próspero, mas Àmon-Rá também era o deus que protegia o faraó (seu filho e representante da terra) durante as conquistas militares.  A maior parte das riquezas era entregue ao clero de Àmon-Rá.  Nas paredes dos templos, o faraó é representado fazendo oferendas a Àmon-Rá e apresentando-lhe as riquezas trazidas das terras distantes.

Em honra ao deus foram construídos templos tão impressionantes, que rumores do esplendor de Tebas se espalharam para fora do Egito.
O maior templo dedicado à Àmon-Rá é o Templo de Karnak, chamado de Ipet-isut pelos antigos egípcios.  Karnak é uma vasta aglomeração de templos, capelas e outras construções de vários períodos, medindo cerca de 1,5 Km por, pelo menos 0,5 Km.

Ipet-isut era o principal centro de culto da tríade tebana, com Àmon-Rá à frente, sua esposa Mut, seu filho Kensu, e várias divindades "convidadas".  Nenhum outro lugar do Egito deixa uma impressão mais irresistível e duradoura do que Karnak: paredes lindamente decoradas, obeliscos, colunas imensas, estátuas colossais, estelas...
Visitando hoje este lugar, dá para se ter uma idéia do que foi o esplendor deste imenso local sagrado.  Durante séculos este templo foi reformado e ampliado pelos faraós.  Em Luxor (Ipet-resyt), um outro templo foi dedicado ao Rei dos Deuses.  Estendendo-se numa área de quase 260 metros, este templo foi construído essencialmente por dois faraós, Amen-Hotep III (a parte interna) e Ramsés II (a parte externa).  Vários outros reis contribuíram para as suas inscrições e decorações em relevo, acrescentando pequenas estruturas ou fazendo alterações, sobretudo Tut-Ankh-Àmon, Hor-em-heb e Alexandre Magno.  

Em Luxor, Àmon-Rá tomava a forma do deus Min.  Este templo estava em estreita ligação com o Grande Templo, em Karnak.
Uma vez por ano, durante a estação das cheias, tinha lugar em Luxor uma grande festa religiosa, a festa de Opet.  A festa tinha início em Karnak, onde as imagens de Àmon, Mut e Kensu eram colocadas em três barcos magnificamente decorados com ouro, prata, cobre e pedras preciosas.  Estes barcos, verdadeiros templos flutuantes, eram rebocados através do Nilo, até o templo de Luxor, onde as imagens permaneciam por cerca de um mês.

O último episódio da festa era o retorno da frota sagrada.  As imagens eram devidamente colocadas em seus santuários em Karnak, e oferendas e libações eram feitas pelo próprio faraó.  Os templos, as riquezas fabulosas que Àmon possuía, o clero poderoso que o servia, clero esse que desempenhou em inúmeras ocasiões papel importantíssimo, mostram a evidência que o prestígio e poder cresceram desmesuradamente no espaço de poucos anos.  O fato de os filhos de sacerdotes herdarem o poder religioso e político dos pais, assegurou um aumento cada vez maior de seu domínio sobre todo o Egito.

Porém, na XVIII Dinastia, o faraó Akh-en-Àton (1370 a.C.) tentou mudar esta situação fundando uma nova capital, onde o único deus era adorado, Àton (o disco solar).  Tebas foi abandonada e os sacerdotes privados de seu poder, pois os templos foram interditados e o nome de Àmon-Rá, assim como o de outros deuses, foram apagados dos monumentos.  Esta mudança, porém, não durou mais do que vinte anos.  Com a morte de Akh-en-Àton tudo voltou ao que era antes.  Como não poderia deixar de ser, o poder do clero de Àmon-Rá continuou a crescer.  Esse mesmo excesso de poder causou a decadência de Àmon-Rá; muitos cultos tinham sido lesados e os sacerdotes de Àmon-Rá, excessivamente poderosos, não raro representavam uma constante ameaça para os faraós.  Com o passar do tempo, houve uma contínua ascensão dos cultos que Àmon-Rá eclipsara.  Durante muito tempo, o poder de Àmon-Rá controlou o Egito, chegando até os oásis líbios, e à Kush, onde os reis o adotaram como deus supremo.  

Os sacerdotes tebanos governavam como qualquer outro poder secular e estabeleciam pequenas rivalidades com o governo dos faraós.
O resultado final de tudo isto foi que, conquistada pelos Assírios em 663 a.C., Tebas e o clero caíram como o reino.  Os deuses das províncias, libertados do jugo econômico de Tebas, retomaram antigos direitos e privilégios; Osíris, um antigo deus agrícola, aos poucos começou a ocupar o lugar que fora de Àmon-Rá.  O culto à Àmon-Rá, agora despojado de toda a sua grandeza, ainda permaneceu até o primeiro século da era cristã.
A trajetória do deus Àmon-Rá mostra como o homem é capaz de manipular e extorquir seus semelhantes através da fé.  O que o deus representava era o conceito mais puro e completo da divindade.  Àmon-Rá era o "Oculto" que se fazia presente em toda a criação.  Era o "Rei dos Deuses", que fazia o Egito prosperar e dava vida a todos os seres.

A decadência de seu poderoso clero não abalou sua majestade divina, pois Àmon-Rá transcendeu todas as falhas humanas.  A concepção de Deus que ele representava serviu de inspiração às primeiras seitas cristãs, e o grau de refinamento artístico dos tempos em que foi o deus do império, nunca foi igualado.

Texto de Wallace Gomes (egiptólogo e artísta plástico)

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