sábado, 6 de agosto de 2011

Religiões Indígenas: Tupi-Guarani (Parte 3)

A  enorme  dispersão  dos  povos  tupi-guaranis por uma imensa área geográfica, conjugada com um longo isolamento, provocou diferentes  transformações em seus sistemas  de  crenças.  Procuramos,  neste trabalho, acentuar mais as semelhanças do que o contrário. Mas é preciso alertar o leitor que em muitos pontos ainda existe, por parte dos diversos pesquisadores, uma incompreensão do sistema religioso, o que demanda mais pesquisas. Um desses pontos refere-se à noção de alma. Em sua denominação mais usual, provavelmente referindo-se apenas à alma de um homem vivo, o termo utilizado é owera. Uma outra denominação refere-se aos espíritos dos mortos, asonga. 

Entre os kaapor, a palavra utilizada para este caso é anhang, que freqüentemente é traduzida como “diabo”. Diferentemente dos  karoara, que são espíritos independentes dos homens, os asonga interferem nos sonhos dos vivos, perambulam pela floresta, podem ser vistos, tornando doente quem tiver a infelicidade de encontrá-los. Mas não vagam eternamente pelo mundo: ao contrário, a sua permanência é curta e um dia atingem o “céu”, através da  itakuara. Lúcia Andrade  (1992),  que trabalhou entre os assurinis do Tocantins, obteve  as  informações  que  esclarecem  a confusão entre owera e asonga:
 
“[o pajé]  aprende  as  canções nos  sonhos com os mortos, com seus espectro-terrestres, denominados asonga. Ao morrer, o ser humano divide-se em espírito-celeste (que se dirige à aldeia dos mortos e com o qual não se tem mais contato) e em espectro-terrestre, que vive na mata e ronda a aldeia […]. Há uma  clara  identificação  entre o asonga  e a personalidade do morto; não se trata de uma manifestação repetitiva e  impessoal. Os laços de parentesco e amizade parecem inclusive perpetuar-se”. 

Utilizamos a palavra “céu” para indicar o local onde vivem as almas dos antepassados e o herói mítico e principal ancestral, Mahyra. Existem divergências  a  respeito desse local: os suruís e os assurinis referem-se a uma região acima das nuvens, a que se chega através da itakuara. Os guaranis preferem se referir a uma “terra sem males”. Nimuendaju colheu uma descrição entre os apopokuvas:

“Perto da casa de Mahyra está uma grande aldeia. Seus habitantes vivem magnificamente. Para  seu sustento  diário  necessitam  apenas  de  algumas  pequenas  frutas semelhantes à cuia: ela se planta e se colhe sozinha. Mahyra e seus companheiros no campo de ikawéra têm o nome de karoara. Quando envelhecem não morrem, mas tornam-se novamente jovens. Cantam, dançam e celebram festas sem cessar”.

É difícil definir o que sejam os karoara. Wagley  e Galvão  (1961)  concordam  em parte com Nimuendaju:
 
“Os Tenetehara se referem aos sobrenaturais pela designação genérica de karoara, porém os distingue pelo menos em quatro categorias:  criadores  ou  heróis  culturais (Mahira, Mukwani, Tupã e Zurupari); os donos das florestas, das  águas  e dos  rios (Ywan, Maranaywa);  os  azang,  espíritos errantes dos mortos; e os espíritos de animais (piwara)”.

A nossa interpretação, resultante de trabalhos entre suruís e assurinis, nos levou a considerar os karoara como espíritos especiais que podem causar doenças ou mortes. Nas situações de cura, os pai’é os retiram
do corpo do doente, podendo também fazer o mesmo com os asonga. Entretanto, outros pesquisadores chegaram a conclusões diferentes. Lúcia Andrade considera que o karoara é uma espécie de força através da
qual o  pai’é  recebe a sua força, desde que ela lhe tenha sido transferida pelo espírito-onça.
 
Segundo Andrade (1992), “possuir a força implica em responsabilidade e perigo. Caso uma série de cuidados não sejam observados o karoara pode matar o seu próprio dono, ou ainda outros indivíduos”. Compete aos pai’é retirar dos homens o karoara, quando este ameaça a sua integridade. É semelhante a explicação de Antônio Carlos Magalhães (1994), que estudou os parakanãs do Tocantins, com a diferença que, nesse caso, o karoara aparece mais como uma  força negativa. Em todo caso, torna-se necessário
um estudo comparativo mais aprofundado sobre o tema.
 
Pelo texto acima, o leitor tomou conhecimento da existência de um ser sobrenatural superior: Mahyra. Ele é a personagem central de um equívoco que data de cinco séculos: no século XVI, os jesuítas procuraram descobrir uma entidade sobrenatural que pudesse ser comparada ao Deus cristão a fim de facilitar a catequese. E tudo indica  que  foi Nóbrega  quem  fez  a  escolha:
 
“Esta  gentilidade  nenhuma  coisa  adora, nem  conhece Deus,  somente  aos  trovões chamam de Tupane; que é como quem diz coisa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais conveniente para os trazer
ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pai Tupane”. Não há dúvida que a adoção dessa palavra, com esse sentido, constituiu em mais uma dificuldade para as missões jesuíticas. Em 1914, Nimuendaju criticou
essa atitude dos missionários e demonstrou o pequeno papel ocupado por Tupã na cosmogonia indígena.

0 comentários:

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Hostgator Discount Code
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...