No princípio, era o Caos (Kháos). O abismo cego, escuro e ilimitado. A total ausência, um vazio primordial. Isto é instigador. O que pode surgir de um abismo cego, escuro, ilimitado?
Surge a Terra (Gaia) do seio do Caos. De alguma forma, Gaia representa um contrário de Caos, já que é presença. Uma presença distinta, uniforme, precisa. Nascida da ausência, do seio dessa ausência. Assim, à confusão, à ausência, ao vazio, opõe-se a presença nítida, firme e estabilizadora. Jean-Pierre Vernant diz que Gaia é o “lugar onde os deuses, os homens e os bichos podem andar com segurança. Ela é o chão do mundo” (2000, 18).
As características de Gaia são a doçura, a submissão e a humildade. Acho interessante ressaltar que a palavra humildade vem de humus (= terra), de onde o homem (humus > homo) é modelado. De Caos surge também Eros (Éros – não o Eros do Olimpo, de Afrodite, que conheceremos mais tarde). Este Eros representa o “Amor Velho ou Amor Primordial” simbolizado nas imagens com cabelos muito brancos. Até então, não havia sexualidade. Esse Eros expressa o impulso primordial do universo. Assim, nessa perspectiva, o Universo simbólico se inicia com esses três elementos básicos: Kháos, vazio primordial; Gaia, a presença firme, estabilizadora e Éros, o impulso primordial do universo.
Como deusa “cósmica” Gaia prescinde de sexualidade e gera sozinha Céu (Ouranós – Urano) e Pontos (água – todas as águas – ou, mais especificamente, a Onda do Mar, que permanece em suas entranhas e delimita suas formas), além de Montes (que lhe dá formas onduladas). Como deusa cósmica, reproduz o Céu (Urano) como espelho de si mesma, tornando-o o seu duplo contrário. É uma réplica tão perfeita, que Urano a cobre imediatamente, deitando-se sobre ela e não deixando entre os dois espaço algum, num casamento sagrado, o primeiro casamento cósmico, como dois planos perfeitamente superpostos do universo.
Urano e Pontos são contrários a Gaia em sua expressão. Gaia tem formas definidas, firmes (bem como Montes). O Céu e a Água são fluidos e líquidos. Segundo a Teogonia de Hesíodo, há a versão de que Tártaro surgiu também como um dos elementos primordiais, bem como Nix (noite). Nesta versão, Caos e Nix estão na origem do mundo. Nix põe um ovo, dando luz a Éros, e das metades da casca partida, nascem Gaia e Urano. Como em todo mito, há várias versões e possibilidades para explicar a origem do universo, mas todas terminam por consagrar o casamento de Gaia e Urano, como um senso comum. Vamos, assim, partir desse ponto, considerando como fundamental para nossos estudos, este primeiro casamento sagrado.
Desse casal sagrado nasce uma numerosíssima descendência dividida em quatro grupos, completando 18 filhos: Titãs (seis), Titânidas (seis), Ciclopes (três) e Hekatonkhires (três).
Mas a união entre Urano e Gaia é cruel. Urano a cobre totalmente, ocupando todos os espaços de suas formas, não deixando entre eles espaço algum. Dessa forma, os filhos gerados não conseguem sequer sair do ventre da mãe, pois não há espaço entre o Céu e a Terra onde possam viver. Ao se deitar sobre Gaia, Urano tira qualquer possibilidade de “luz” (dar a luz!). Gaia se sente reprimida, inchada em seu ventre e totalmente sufocada por Urano. Mas não reage ou não se sente em condições de reagir.
De qualquer modo, Gaia tem a doçura aliada à loquacidade e engenhosidade. É uma divindade ao mesmo tempo escura, por sua postura de submissão e humildade, e luminosa, por conter em seu ventre a luz. E conversa com seus filhos Titãs, especialmente o mais novo, Cronos (Khrónos). Gaia fabrica dentro de si mesma uma espécie de foice (hárpe) e a oferece a Cronos. Este espera que Urano ensaie uma nova cópula com Gaia e aproveitando-se da oportunidade, castra o pai. Dominado pela dor, Urano retira-se de Gaia e se afasta para o alto do mundo, de onde não mais voltará, criando assim, entre o Céu e a Terra um espaço para que todos possam vir à luz.
Nascem, assim, todos os filhos de Gaia. Crono lança por sobre seus ombros os órgãos do pai em direção ao mar. Do membro viril cortado, no entanto, caem gotas de sangue na terra, antes que este alcance o mar e dessas gotas nascem as Erínias. As Erínias são, portanto, forças primordiais, ou advindas de forças primordiais, cuja função será sempre a de se vingarem de uma afronta feita por um parente a outro, ou seja, crimes consanguíneos. “Representam o ódio, a recordação, a memória do erro e a exigência de que o crime seja castigado”. (in: Vernant, 2000, 25). Nascem também outros seres, como os Gigantes, que vão representar a força da guerra, e as Melíadas (ninfas), também guerreiras.
Assim, “do sangue da ferida de Urano nascem três tipos de personagens que encarnam a violência, o castigo, o combate, a guerra, o massacre” (op. cit). Isto será denominado, na descrição da mitologia grega como Éris, ou seja, conflitos, discórdias de todos os tipos e, mais especificamente, quando se tratar das Erínias propriamente ditas, discórdias provenientes de crimes em uma mesma família.
Enquanto o movimento provocado por Gaia, Urano e seus filhos se desenrola, paralelamente, Caos, além de Gaia, produz por si só, dois filhos: Érebo e Nix (noite). Érebro personifica a profundeza das trevas permanentes, enquanto Nix gera Éter e Dia (Hemera, em grego), ambas, portadoras da luz. Éter personificará a luz cósmica mais pura, mais próxima ao Céu, enquanto Dia e Nix passarão a formar um ciclo uniforme de noite e dia.
Assim se consagra a primeira geração divina e deixaremos para a outra postagem, o final da criação da chamada Teogonia (genealogia dos deuses), para que possamos, a partir de então, discorrer sobre alguns mitos, em particular.
Texto de Eulalia Fernandes
0 comentários:
Postar um comentário