Mais uma vez o Jornal O Bruxo Pernambuco traz uma de suas séries de postagens, ainda seguindo a trilha de culturas antigas, desta vez abordando a Cultura Inca, mais especificamente sua religiosidade. Espero que gostem dessa proposta.
Na base da superestrutura cosmológica e religiosa que vigorou por milênios a fio no mundo andino, desde muito antes do Tahuantinsuyo (Império Inca), estava a suposição da existência de uma força vital presente em todos os aspectos da existência, força esta que recebia o nome de camaquem - a qual, sob certos aspectos, evoca a noção animista da existência de um único princípio vital que dá forma e possibilidade de manifestação a todas as coisas: vegetais, animais, seres humanos ou mesmo objetos inanimados.
Dentro desta visão, o céu, a terra e o mundo subterrâneo não estavam irredutivelmente separados. Ao contrário, compunham entre si um cosmo harmonioso dividido em três planos em permanente intercomunicação: ananpacha ("mundo superior", ou céu), caypacha ("mundo médio", ou superfície terrestre) e ucupacha ("mundo inferior", ou subterrâneo).
No mundo superior, ou ananpacha, viviam os deuses celestiais, como o Sol, a Lua, as estrelas (chamadas indistintamente coyllur), o raio, o arco-íris etc. Nele, o firmamento (tumipampa) era concebido como uma abóbada que encostava suas bordas na superfície da terra e tinha formato côncavo, donde a faca sacrificial (tumi) ter este formato.
Já o mundo médio (caypacha) era plano e servia de morada para os seres humanos, os animais, as plantas e os objetos.
E o mundo subterrâneo (ucupacha), por sua vez, tinha sido o cenário original dos primeiros humanos e de alguns animais e sementes, que dele haviam saído por grutas, covas, lagos e lagunas.
O Deus-Sol, em seu percurso diário, entrava à noite por uma fresta entre caypacha e ucupacha, vindo de ananpacha, retornando no dia seguinte após uma longa viagem por um túnel e voltando a iluminar e aquecer o mundo.
Nesta concepção cosmológica, o camaquem não era precisamente a alma, como a concebiam os cronistas da época, ocupados em registrar a sociedade do Tahuantinsuyo; era, antes, um princípio de movimento, uma substância primordial, um fluido imaterial que penetrava tudo e dava vida à própria vida, manifestando-se sempre de outra forma após o desaparecimento do corpo que o portava e dele se vivificava.
Assim, antes da Conquista não havia na região andina a crença na transmigração de almas nem a noção de inferno ou paraíso, menos ainda a de pecados a ser redimidos com vistas a uma vida futura, sendo antes uma cosmogonia vitalista que reencarnacionista.
Acreditava-se, contudo, na sobrevivência da vida após a morte, e por esta razão os mortos eram mumificados e cuidados por sua descendência: impedir o desaparecimento do corpo, evitando sua queima ou decomposição, seria como mantê-lo vivo de outra forma, para impedir que o camaquem se dispersasse.
Ia a um tal ponto esta obsessão, que muitas vezes os corpos mumificados eram dispostos em tumbas coletivas (machay), para que na eventual ausência de descendentes ou parentes os mallquis ali depositados pudessem receber os cuidados de todo o ayllu (oferta de coca, bebidas e alimentos, além de troca regular de vestimenta).
(Há registros, todavia, de algumas regiões nas quais inclusive se acreditava que um morto visitava sua família em datas determinadas, algo próximo à "volta" de um espírito, segundo a noção reencarnacionista, assumindo então a forma de mutucas ou grandes moscas - razão pela qual em alguns locais do Chinchaysuyo tais insetos nunca eram mortos.)
Nas regiões serranas o corpo mumificado era depositado em posição fetal, com os cotovelos entre os joelhos e as mãos segurando o queixo, rodeado com objetos de uso diário e às vistas de todos; para ali os parentes diretos e colaterais acorriam, levando alimentos e derramando mate ou chicha (bebida fermentada de milho, de uso diário e ritual) na boca da múmia.
Já nas regiões costeiras, o corpo mumificado era disposto em decúbito dorsal e enterrado em areia ou terra, tomando-se cuidado para que o peso da câmara funerária não o aplastasse e ligando-se sua boca à superfície por um caniço oco, através do qual se vertia chicha em datas e festividades especiais.
[Fonte: FREITAS, Luis Carlos Teixeira. Tahuantisuyo - O Estado Imperial Inca. Luzcom Multimakers, 1997]
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