O Jornal O Bruxo começa hoje uma série de entrevistas com diferentes representantes do movimento pagão no Brasil e no Mundo. Começamos essa série com o querido Odir Fontoura, 25, autor do blog Diannus do Nemi. A seriedade de seu trabalho e suas críticas ao movimento pagão fizeram dele uma das pessoas mais influentes do meio na web. Residente em Guaíba (RS), ele ainda atua como professor, historiador e com a leitura de Tarô.
Legenda:
- JOB: Jornal O Bruxo
- OF: Odir Fontoura
JOB: Como foi teu
começo no Paganismo?
OF: Comecei a estudar o paganismo há cerca de nove anos atrás. Ainda
estava no ensino médio e, de bobeira na internet, fui procurar imagens
relacionadas a fantasmas, espíritos e assombrações. Sempre gostei de coisas do
gênero. Fui testando diferentes palavras-chave na busca de imagens do Google,
até que digitei "bruxaria". Não achei nada de assustador e, para
minha surpresa, a "bruxaria" que descobri naquele momento nada tinha
de macabro. Ao invés de pesquisar imagens,
comecei a ler alguns textos, descobri a palavra "Wicca" e minha vida
mudou para sempre desde então. Os anos se passaram, terminei a escola, comecei
a fazer faculdade de História (estudei sobre as relações do paganismo e do
cristianismo na Antiguidade Tardia), já terminei o curso e hoje estou no mestrado e já dou aulas. Dou palestras sobre
o assunto, já escrevi um romance histórico tratando do tema, o "Sob o Sol
já Deitado" e continuo trabalhando no meu blog, o "Diannus do Nemi -
Artes e Paganismo" há cerca de sete anos.
JOB: E como foi
começar a atuar no ativismo pagão?
OF: Depende do que você chama de ativismo... Eu prefiro falar em
cidadania. Penso que todo pagão deveria repensar e exercitar o conceito de
cidadania, principalmente levando em conta o que os povos antigos, como gregos
e romanos, viam o assunto. A diferença é que se
compararmos o mundo do séc. XXI com a sociedade ateniense, por exemplo, é
importante que o conceito de “cidadão” deve ser ampliado a todas as pessoas possíveis, e não apenas a uma pequena elite culta.
O meu papel "público" no paganismo é um trabalho intelectual,
de reflexão e de debate de ideias. Tão importante quanto o trabalho daquele
pagão, por exemplo, que sai nas ruas e levanta a bandeira da liberdade
religiosa ou da preservação da natureza. São trabalhos que se complementam e
uma coisa não acontece sem a outra. Acho que cada um tem a sua esfera de
atuação pública e política e deveria exercitá-la constantemente e da melhor forma
possível.
JOB: O seu blog,
Diannus do Nemi, tomou uma projeção incrível, tornando-se uma das páginas de
referência no meio pagão. Como começou esse trabalho e como foi o ver tomando
tal proporção?
OF: O blog começou sem muitas ambições. Era pra ser algo pessoal: eu
escrevia poesias e assuntos muito íntimos. Como muitos adolescentes, eu me
utilizei da escrita como uma forma de expiação, de fuga, pra traduzir (na
medida do possível) aqueles sentimentos que não podiam ser expressos senão pela
arte. Mas o tempo passou, as visitas começaram a aumentar, meu perfil de
escrita também se transformou e a coisa mudou de forma.
Quando eu passei a escrever só sobre o paganismo e minhas opiniões sobre
isso, as visitas começaram a crescer absurdamente. Fiquei assustado, mas também
excitado pela forma em que as coisas aconteceram. Até hoje, nada me deixa mais
feliz do que receber, gratuitamente, e-mail de algum leitor agradecendo pelo
que lê... O que é uma ironia, pois era eu quem deveria agradecer por tamanho
carinho e por tantas coisas que aprendo com os comentários, sugestões ou
compartilhamentos dos leitores.
Assumo que de uns meses pra cá o blog está meio parado, mas prometo que
a situação nos próximos meses vai mudar (risos). Coisas novas vêm por aí.
JOB: Alguns dos
textos tratados no seu blog são bem polêmicos e são conhecidos por não medirem
palavras ao comentar sobre certos aspectos do cenário pagão. Como são as
respostas a esses textos?
OF: Eu confesso que alguns desses textos são propositalmente provocativos.
Existem algumas "feridas" do cenário pagão que eu faço questão de
mexer: a insistência que muitos pagãos tem em “vilanizar” o cristianismo é uma
dessas questões. O discurso das "bruxas ancestrais que foram sumariamente
mortas nas fogueiras", por exemplo, além de estar recheado de preconceitos
e equívocos históricos, é pobre, simplista e vitimista. O cristianismo prejudicou
sim a continuidade das tradições pagãs, mas é uma relação de mão dupla. O que
muitos esquecem é que, se não fossem muitos sábios cristãos, tão
"malvados", muito da literatura ou da filosofia clássica, por
exemplo, que cristianizada, não teria chegado até nós.
Outra questão polêmica é a da bruxaria como algo marginal. Todos sabem
que, pra mim, bruxaria nunca foi religião. A bruxaria é um ofício
historicamente marginal e periférico a todas as religiões, inclusive as cristãs.
Se hoje as pessoas a veem como tal, o que considero legítimo, aí é outra
história. O que não podemos é dar continuidade ao discurso Murray de um
"culto" bruxo e pagão que sobreviveu desde a pré-história aos dias
atuais. Crer nisso, pelo menos pra mim, é ingenuidade.
Mas respondendo a sua pergunta: as respostas a esses textos nem sempre
são favoráveis.
O que é bom. O conhecimento é construído através do debate, do diálogo e
da discussão (quando respeitosa). Esses debates são construtivos não só pra
quem discute, mas pra quem, em silêncio, acompanha de fora e só lê descendo a
barra de rolagem - como eu penso ser a maioria do público leitor. Eu gosto de polemizar. "Da água parada
espere veneno" já dizia William Blake.
JOB: E como você
responde a essas críticas? Seu blog vem abordando bastante as questões políticas,
como isso tem repercutido?
OF: A ferramenta do blog não é propícia para debates. Você verá que as
postagens geralmente têm poucos comentários, não é algo muito funcional. Mas as
páginas de comunidades em redes sociais, como as do facebook sim. Então as
pessoas tem o hábito de ler no blog e discutir nas comunidades. É lá que eu
respondo. Independente se os leitores concordam ou discordam, é sempre muito
positivo pelos motivos que falei acima.
Sobre as questões políticas, volto ao que falei sobre a cidadania.
Pensar a política e pensar a sociedade é ser cidadão. E ser pagão é ser
cidadão: é uma questão, inclusive, etimológica. É comumente aceito que
paganismo vem do "pagus" ou "campo". Mas estudos recentes
lançam a possibilidade de que "pagão" não é o que vem do
"campo", mas o defensor da "terra", ou seja, "do
lugar".
O pagão é quem preza, então, pelas tradições. Se o pagão se importa com
o lugar, com a terra, ele se importa com a sua cidade, com seu estado, com seu
país, com seu planeta.
Politicamente falando: o paganismo não pode mais esconder-se nos parques
públicos, nas praias isoladas, ou nos nossos quartos durante a madrugada. Ele
deve estar na urna eletrônica na hora do voto, na ponta da língua na hora de
criticar a alienação do povo e em tanto outros momentos públicos, civis,
sociais.
JOB: E como você
enxerga esse público pagão?
OF: Posso ser honesto? O paganismo aqui no Brasil é constituído
predominantemente de gente jovem. Mas muitos são jovens conservadores. Não só
politicamente, mas espiritualmente também. Acho que as pessoas tem que ter
coragem de colocar à prova suas crenças e seus argumentos. Não é feio se
contradizer. Eu mesmo me "desminto" frequentemente, por algo que
defendi no passado e já não creio mais. Todos sabem que
eu tenho uma visão política de esquerda. Então acho que é possível equilibrar
uma visões políticas “tradicionais” (no sentido de preservar o que é importante
como, por exemplo, nossos recursos naturais ou os avanços democráticos que
lentamente conquistamos) com visões políticas transformadoras (por exemplo: a
convicção de que a sociedade deve ser menos desigual e menos repressora).
JOB: Em 2011, você
publicou um romance-histórico bastante interessante que retrata a transição
entre a sociedade pagã e cristã. Como repercutiu esse trabalho? Planejas publicar
um próximo trabalho do gênero?
OF: O romance foi um experimento. Eu escrevi um conto com esse nome que
repercutiu muito bem. Muitas pessoas comentaram e algumas ficaram muito
emocionadas, o que me deixou muito feliz. Depois da resposta tão positiva do
conto, desdobrei a ideia e escrevi o romance. Utilizei o conto, adaptado, como
epílogo do livro. Recebi uma resposta bacana, mas hoje faria diferente. Penso
que o livro ficou grande demais, e nem todos ainda tem o hábito de ler e-books.
Penso em voltar a escrever ficção, mas se de fato fazê-lo, lançarei como livro
físico. Essa é uma das ideias que está "germinando" aos poucos
(risos). Pelo menos por enquanto eu estou focando mais
no meu trabalho “profissional” de historiador.
JOB: Mas falando
um pouco mais do movimento pagão, como você vê o cenário pagão do Rio Grande do
Sul e do Brasil?
OF: Eu acho promissora. Em especial no Rio Grande do Sul, que é onde
moro e tenho a oportunidade de acompanhar de perto. Aqui temos um grupo coeso e
organizado, que é o pessoal do outrora chamado Coven
Serpente de Fogo, liderado pelo Luís Gustavo Pereira.
Os encontros são organizados, ininterruptamente, como já disse, há 10 anos:
situação única em todo o Brasil. Eu não sei exatamente,
mas parece que hoje esse grupo trabalha junto com o pessoal do Rosa dos Ventos
Conclave de Bruxaria. De qualquer forma, o que o paganismo precisa é
justamente disso: de pessoas organizadas, lúcidas, que disponham de tempo (e
coragem) para organizar encontros, reuniões, rituais e debates com certa
periodicidade. O paganismo ainda é muito virtual. E esses encontros pessoais
são muito enriquecedores!
Outra lembrança que vale comentar é o pessoal do Og Sperle que
organiza as passeatas em prol da liberdade religiosa. Já tive a oportunidade de
ver a Mavesper Ceridwen discursando em Brasília sobre questões semelhantes. E
tem muita gente boa por aí! Mas precisamos de mais gente.
O que mais vemos por aí são "líderes" ou
"sacerdotes" que não fazem muito mais do que polemizar nas redes
sociais com seus shows de ego: falam, falam, mas nunca dizem nada. Acho que
falta isso: o paganismo precisa ter voz. Menos compartilhamento de fotos de
fadinhas e gatinhos falantes com frases bonitinhas. Mais reflexão. Mais
opinião. Mais encontros presenciais, mais debates cara-a-cara com leitura e
embasamento.
E isso é muito importante: o paganismo precisa deixar pra trás sua face “esquisotérica”.
Chega de fantasias, de lantejoulas, de extraterrestres e coisas do gênero.
Precisamos sair do "plano das ideias", das viagens do History Channel e colocar em prática o
que acreditamos, como seres políticos e sociais (e materiais, terrenos) que
somos.
JOB: Então,
finalizando a entrevista, qual o seu recado final para nossos leitores?
OF: Fica aqui o meu agradecimento e o meu reconhecimento a você,
Douglas, pelo trabalho do Jornal "O Bruxo", desejo sucesso e
parabenizo pela iniciativa! Aos leitores da entrevista, espero que tenham
conseguido extrair algo de útil dessa conversa. Estou sempre aberto para
críticas e sugestões. Vou terminar essa entrevista com a nossa saudação
tradicional: Um feliz encontro para um feliz reencontro! Abençoados sejam.